
voz-corpo
pensar a voz nos contextos da educação musical:
para além da voz falada, a voz-corpo ocupa um espaço significativo em ambientes de aprendizagem musical, no entoar de canções, nos gestos vocais presentes na paisagem sonora do cotidiano desses espaços, nos nossos próprios gestos vocais, na forma como nos enunciamos e nos escutamos.
ao explorar nossa voz de forma lúdica e criativa, podemos descobrir cantos que não conhecíamos, em nós. escutar outros cantos também é chegar a lugares que não iríamos só.
essa trilha propõe, a partir de cartas apresentadas como “sonoridades”, caminhos criativos e afetivos para pesquisar diferentes sonoridades da voz. quais materiais sonoros sua voz pode produzir? como sua voz realiza cada material sonoro sugerido?
√ recursos, sonoridades e caminhos lúdicos para a exploração sonora da voz, partindo do universo dos fonemas
√ os sons são brinquedos
√ a saúde vocal através da expressão, da ludicidade e da criatividade
√ quais materiais sonoros podem ser adicionados nessa pesquisa criativa e exploratória da voz?
√ quando o caos é mais acolhedor que o silêncio?
√ caminhos acolhedores para uma escuta afetiva da própria voz.
atividades por carta
um atravessamento decolonial necessário
voz, corpo, identidade: quando pensamos o fazer musical em nossos ambientes, que músicas, que identidades estão ali representadas? abrir espaço para que todas as vozes sejam escutadas é uma ação política, e que requer muita atenção. escutar é aprender com a outra pessoa sobre sua história, é um movimento de desapego daquilo que nos constitui, em direção à outra pessoa.
reconhecer que as instituições são espaços de e para pessoas brancas e cis, e representam essas identidades majoritariamente, é o primeiro passo para trabalhar essa escuta. compartilho algumas referências que têm alterado radicalmente meus sentires, pensares e fazeres.
como falo do lugar de mulher branca, em processo de descolonização, que passa por reconhecer a branquitude em mim, começo com Cida Bento:
*(...) as formas de exclusão e de manutenção de privilégios nos mais diferentes tipos de instituições são similares e sistematicamente negadas ou silenciadas. Esse pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o “diferente” ameaçasse o “normal”, o “universal”. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele.
(BENTO, p. 15)*
Cida Bento fala do medo, e da forma como reagimos a ele, e essa é uma chave para o trabalho. na prática, a consciência sobre o lugar de fala tem me ensinado a situar meu discurso, buscando ressignificar conceitos a partir da compreensão dos valores que ele carrega. isso se reflete principalmente em localizar histórica e socialmente conceitos, procedimentos e práticas, entendendo que universalizações e generalizações são frutos de uma visão parcial, hegemônica, branca e eurocêntrica do mundo. o que a branquitude lê como normal, na verdade é normatizado através de um violento processo de epistemicídio que invisibiliza culturas e silencia vozes não brancas e não cis-masculinas.
*Ou seja, reconhecendo a equação: quem possuiu o privilégio social possui o privilégio epistêmico, uma vez que o modelo valorizado e universal de ciência é branco. A consequência dessa hierarquização legitimou como superior a explicação epistemológica eurocêntrica conferindo ao pensamento moderno ocidental a exclusividade do que seria conhecimento válido, estruturando-o como dominante e, assim, inviabilizando outras experiências do conhecimento. (RIBEIRO, 2017, p.16)*
ler, escutar, conviver com pessoas não brancas e não cis, me ensina a desnormatizar minha existência, e por consequência vem transformando minhas atitudes e escolhas em todos os campos da minha vida, inclusive o profissional. estar em ambientes de aprendizagem faz com que essa transformação seja ainda mais urgente, necessária e inevitável, por acreditar e trabalhar (lutar) por uma educação como prática de liberdade, como potencial transformadora de pessoas. para mim é uma questão de vida.
premissas do pensamento sobre voz
“a voz situa-se na articulação entre corpo e o discurso, e é nesse intervalo que o movimento de vaivém da escuta pode realizar-se.” Roland Barthes.
antes de entrar no contexto, há sempre uma regra inquebrável quando se trata de corpo, que é: “respeite seu corpo, não faça nada que vá te machucar ou ultrapassar seu limite”. isso é bastante relativo, para cada pessoa há um lugar que é mais desafiador e difícil de lidar, lugares que nos expõem... reconhecer esse lugar é parte do aprendizado: desenvolver a auto-observação com acolhimento e auto empatia.
então, vamos... mais um mergulho sobre a voz-corpo, que canta, que vocifera, que vocaliza. como eu me reconheço na voz-corpo que habito? quais os confortos e desconfortos encontro em minha voz-corpo? que histórias, que memórias, que sons, que vozes me constituem? como escuto minha voz? como cada pessoa pode se apropriar dessa pesquisa sobre a voz-corpo com autonomia e criatividade?
[ a voz situada; articulação entre corpo e discurso; escuta em movimento; vaivém som - silêncio; ritmos; pulsões. derivas. mapas. cartografias. ]
voz-corpo me leva à escuta. de vozes. de pessoas. com suas histórias, em suas buscas diversas pela voz. escuta também da minha própria voz. fui (e venho) entendendo que a voz é de cada pessoa, que existe uma relação de intimidade com a voz e, mais que isso, de unicidade. a beleza de cada voz está no encontro da pessoa com sua voz própria, a que se conecta com sua essência. a voz-experiência é justamente esse processo de auto-aprendizagem necessário quando se trata de voz.
A voz-experiência seria uma voz que escuta, pode ser escutada e pode narrar a própria história, por isso é uma voz em relação com o outro; é uma voz que habita o próprio corpo e que se expõe; que cuida de si, presta atenção, se percebe. Por esse caminho da voz-experiência podemos chegar à voz própria: uma voz que pode enunciar a si próprio, inventar a si próprio, num espaço que é público.” (GELAMO, 2018)
na partilha de histórias e memórias sobre a voz, resgato uma experiência com a Renata Gelamo, em um ateliê de voz, ao perguntar quando senti minha voz silenciada e quando senti minha voz valorizada. no processo, Renata narra sua história (você pode ler na tese de doutorado dela) e nos convida a compartilhar nossas narrativas. oferece escuta a todas as vozes, e tece uma trama cartográfica de diversas histórias que se encontram, tanto no silenciamento quanto no som.
o quanto nossas experiências com voz, ao longo da vida, moldaram nossa escuta para a voz própria, condicionando-a a padrões e maneiras de fazer? entendo que tanto quanto sentimos medo ou vergonha de realizar sons “estranhos” aos consolidados pela monocultura que habita as diversas áreas do fazer musical.
entregar-se ao jogo sonoro é o processo e a proposta para navegar pelas perguntas acima. as cartas de sonoridades foram pensadas a partir da própria exploração de fonemas e outras sonoridades características da voz falada e cantada, sem necessariamente entrar nesses campos. podem ser utilizadas como fonte de dados, um repertório sonoro possível, ou exploradas uma a uma, através de dinâmicas e jogos diversos.
BENTO, Cida. O Pacto da branquitude. [recurso eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
GELAMO, R. P. Narrar a voz: trajetórias de uma voz-experiência em busca da voz própria. 150 fl. Tese (Doutorado em Artes) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo, 2018. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/items/682c0cf3-6b5f-4db5-a931-63705017b9c7
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? coleção Feminismos Plurais - ed. Letramento - 2017
BARTHES, R. O obvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.